Prólogo de um Sol Póstumo – Capítulo 2
A morte caminha entre tudo o que é vivo, o Sol que iluminava toda a vida, agora que seu brilho se espalhou, o que sobrou?
Caim não se preocupava com tais questões, não naquele momento, a verdade da vida sempre foi assustadoramente simples pra ele. Tudo tinha um propósito, e todo propósito requer adaptação e assim ele tinha uma função no mundo. Ser funcional é existir.
A velha Kúká olhou para o jovem Caim, ela avaliou que ele deveria ter menos de 30 anos, com cabelo que deslizava pelos ombros, sendo mais longo que o dela. A lua carmesim contrastava com o negro dos seus fios. O ar ao redor dele cheirava a doce, sua pele era pálida, apesar da voz suave e doce, ela era experiente o suficiente para sentir o veneno de uma cobra toda vez que ele falava. Homens assim a encantavam. E ele tinha dinheiro, muito dinheiro, a questão era só uma para Kúká – ele irá matá-la depois de ajudar ele? Homens assim a fascinavam. Mas honestamente, dinheiro ainda é útil agora que todos vão inevitavelmente morrer?
Questões que nunca importam a Caim surgiram em excesso na cabeça da velha, ele vai me matar? Quando? Enquanto Caim se preocupava em respirar profundamente bem, a velha se preocupava com possíveis futuros.
Caim pediu ajuda da velha para carregar Abel à igreja para tratar os ferimentos do irmão. A velha parecia uma mistura de goblin e bruxa pra ele. Seu corpo torto, corcunda, sua pele parecia carvão queimado, embora o desprezo transparecesse em seu olhar, Caim nutria um afeto utilitário pela velha. algumas horas se passaram, eles não sabiam exatamente quanto tempo, pois no ambiente tudo estava em um tom carmesim e um clima quente, ao menos Caim pode descansar depois de tratar do irmão, e agora ele vai começar o ritual de exorcismo e os dois foram a igreja, arrastando o corpo de Abel, Kúká pegou cordas enquanto Caim colocava Abel sobre uma maca improvisada com uma tábua longa. Os dois puxarem as cordas até a descida à igreja.
Ele amarrou o irmão com cordas e o prendeu com laços fortes o suficiente para prender um touro, pois Abel era corpulento. Caim já viajou por vários lugares e conversou com diversos povos, ele era de estatura média para onde vivia, mas Abel era um gigante. Caim deveria ter 1,65 enquanto Abel passava dos 2 metros. O corpo do irmão, no auge masculino, é um pináculo absoluto de força e poder. Cada músculo era esculpido com rigor. Caim admirava o corpo do irmão, como alguém poderia ter a disciplina o suficiente para construir tal corpo, mas não para controlar o copo? Caim sabia que o tremor viria e junto dele a raiva, como o Sol, Abel era propenso a explosões. Por isso ele prende ele com cordas e depois uniu os punhos com os calcanhares do irmão, imobilizando completamente. Ele esperava que os laços fossem o suficiente para conter tal animal.
Caim usava uma roupa de linho branco, uma calça de couro e botas, tirou as luvas pretas que usava, Kúká notou que ele não tinha o dedo indicador direito, fato que não havia notado previamente. Também percebeu que ele era canhoto, o rapaz ficava cada vez mais interessante. Eles foram à igreja, que era próxima, arrastando lentamente o corpo de Abel.
Um barulho começou a incomodá-los, moscas. Moscas voavam e zuniam, ele já estava acostumado com os insetos do mato, mas essas moscas pareciam que estavam próximas de uma carcaça, pois iam se acumulando. Eram enormes e mais agressivas que o normal, seu zumbido parecia um gemido leve de dor.
Ao chegar na porta da velha igreja, Caim viu que ela era feita de tábuas e com apenas um templo central, com 3 fileiras de bancos. Ele deitou Abel na frente, onde o padre ficava, ele notou que a imagem de Cristo havia sido arrancada, mas a cruz permanecia. Mesmo com Kúká fechando as janelas e portas, as moscas pareciam surgir dentro da igreja. Caim iniciou o processo de exorcismo com sal grosso, ele cercou o corpo de Abel com o sal grosso, e começou a orar um pai nosso, mas as moscas zuniam e gemiam em horror ao seu redor, ele precisou respirar fundo, contar a respiração, segurar mais, contar, soltar, contar e então a porta igreja começou a tremer trazendo um ranger agudo para dentro da igreja.
Mesmo assim Caim prosseguiu com o exorcismo, ele pegou água pura de um cantil que sempre levava consigo, e começou a rezar ao SENHOR para santificar a água. Kúká observava tudo com admiração, os movimentos, a oração, tudo era feito com gestos finos, com uma santidade que não deveria vir do animal humano. Ela até esqueceu da cobra que tal homem deveria ser.
Kúká então percebe que a quantidade de moscas está realmente acima do normal, olhando ao redor da velha igreja ela nota que as moscas parecem surgir do chão. Ela busca ao seu redor e encontra ovos, ao pegar um ele eclode na mão dela, uma mosca gorda sai e começa a voar, todas vão ao redor do corpo de Abel. O corpo enorme do gorila se move, os uivos que se ouviam lá previamente, voltam. Agora Kúká nota e Caim também, não eram uivos, os animais lupinos não eram capazes de tal som, eram gemidos humanos, leves, penetrantes, espalhava pelo ar como aroma doce de morte que se misturava com o som das moscas infernais. Algo em Caim, alguma coisa nele, fazia ele se excitar ao ouvir tal som, mas como monge ele focou na respiração e no ritual de exorcismo.
Abel volta a gemer levemente, um som grave de U sai da boca dele, como se tentasse recuperar a consciência, nos seus lábios grossos surgiu um sorriso, seus dentes amarelos preenchiam seu rosto, um sorriso tão grande que engolia o silêncio e se tornava uma risada. Os olhos vermelho-albino brilhavam, um prazer de orgasmo saia do seu olhar. As moscas então o cercaram e sua voz surgiu como trovão.
— Quanto tempo se passou desde a última vez que eu estive aqui? — perguntou Abel. Tanto a senhora Kúká quanto Caim ficaram calados. Abel então prosseguiu — Silêncio? Bem, vejo que você tem um bom conhecimento com nós, monge, aprendeu onde? Honestamente não faz diferença, você sabe quem eu sou? —
— Baalzebub, um dos setes príncipes do inferno, senhor das moscas. Se você possui Abel quer dizer que estamos em um dos setes infernos ou que vocês saíram dos setes infernos. Honestamente não faz diferença pra mim — Caim então prosseguiu o ritual, ele tirou uma agulha grande e uma linha vermelha, segurou a agulha com a mão sinistra e com a destra segurou a água abençoada — com tal estupidez, de possuir Abel, eu vou ter que segurar ele. Creio que nenhum ser vivo seja capaz de deter a fúria dele além de mim, agora que nossos pais estão mortos. — Caim abriu os dois braços, olhou para cima, para o teto da igreja e depois para baixo, para o animal amarrado no chão e perfurou a mão direita com a agulha e depois a esquerda, limpou as mãos com a água-benta, mas o sangue fluía, já que ele escondia uma stigmata nas mãos, a ferida se abriu com a agulha.
— Caim, você realmente acha que pode me exorcizar? Eu possui um corpo perfeito para expandir meu reinado, agora só preciso me livrar das cordas, matar os dois e alimentar as minhas moscas com seus corpos. — Baalzebub fitava Caim com um olhar de mosca, multifacetado, morto e frio, em contraste com o calor que fazia a Kúká e Caim suar.
— Senhor Abel, eu posso ajudar o senhor, não sou um padre, mas sou capaz de conceder bênçãos e acabar com quebrantes, quando o senhor falou do exorcismo eu separei arruda e sal grosso — A velha tentou sair para não ficar tão próximo do perigo, mas um estrondo aconteceu, fechando a porta da igreja, também as janelas que deixavam a luz escarlate entrar se escureceu, uma escuridão profunda preencheu a sala, o som de moscas desorientou os dois, Caim e Kúká não conseguiam enxergar. Agora nas janelas os gemidos humanos aumentavam, um clamor pelas almas dos dois era cantado em gemidos e zumbidos de moscas, Caim e apenas Caim ouviu as cordas se soltarem de Abel, ele ouviu um som de água caindo, como se um fluxo de rio começasse a correr e estivesse se aproximando.
Caim sentia no ar, no vento ao seu redor, coisas que nunca sentiu antes, o ar trazia memória, tinha tato, o cheiro tinha conhecimento, tudo era ar e tudo voltava ao sopro. Kúká sentia um tremor no chão, eram os passos com pés molhados de Abel, tal monstro de humano não dava um passo sem trazer uma vibração, e pelo medo, Kúká estava sensível a todos movimentos. Abel se soltou das cordas e Kúká ouviu um estrondo, na direção de onde estava Caim. Tentou correr, mas suas pernas magras e fracas não a obedeciam. Ela juntou as mãos em uma oração, mas os zumbidos e gemidos tiraram sua concentração. Os gemidos agora gritavam em uníssono — Ele retornou! — Kúká tentou gritar, sua voz não saia. Em um estado patético de ser ela não conseguia nem chorar, as moscas começaram a subir pelo seu corpo, rastejando pela sua pele velha, um gosto de metálico de sangue na sua boca. A morte é real.
Caim sabia exatamente de onde viria o chute, e mesmo não subestimando a força do oponente ele se surpreendeu, Abel correu e pulou com os dois pés, mirando no peito de Caim; Caim ouviu o estrondo que era cada passo e a partir do som previu a direção que ele iria atacar e desviou. Abel passou por cima dos bancos e quando bateu, Caim ouviu um som como se uma cascata caísse sobre uma pedra, não um som de um objeto sólido em contato com outro. Caim sabia a posição de Abel a todo momento pelo fedor, era de água com enxofre, mas o som das moscas e dos gemidos tirava sua concentração. Ele então focou na respiração, colocando a língua no céu da boca e contando a respiração ele conseguiu focar no som que Abel fazia, conseguia até ouvir seu coração batendo, parecia que tudo no mundo era som.
Nesse estado, uma euforia subia por Caim, ele não conseguia mais segurar ou fingir, existia um prazer real naquela situação, ele poderia morrer a qualquer segundo, ele sempre quis uma boa morte, se ele morresse contra um príncipe dos infernos, ao ser morto por ele, como seriam as sete mortes do Baalzebub?
— Você realmente acha que eu te mataria, Caim? Eu posso apenas quebrar todos seus membros e te deixar vivo ainda. Utilizaria seus gritos de dor como um estandarte, seu corpo seria um escudo que trará sete mortes aos meus rivais. Você é um recurso muito valioso para mim. — Abel olhou em direção a Kúká e sorriu, a velha estava cercada por sal grosso e no centro orava fielmente a São Francisco, ele admirava isso. Tanto o Abel antes de ser possuído, como Baalzebub admiravam isso. O motivo é simples, ela conseguiu afastar as moscas, isso não deveria ser possível, o que quer dizer que alguém está intervindo, ou algo.
— Você percebeu, né? — Caim disse calmamente, então uniu as palmas das mãos, agradecendo ao SENHOR — Eu demorei um pouco para perceber também, mas antes de entrarmos aqui eu já sabia, ela performa sinais, a partir das maravilhas do SENHOR, ela é um recurso muito valioso para mim — Caim não conseguia mais alternar entre euforia e calma, nem com respiração, nem com a língua no céu da boca, ele gargalhou de êxtase.
Caim correu em direção do colosso que era Abel possuído, e deu um soco, o soco em si não teve efeito, mas ele sentiu o que queria, o corpo dele estava molhado, completamente encharcado, mas ao tocar ele percebeu que não era completamente sólido, ele sentiu como se desse um soco na água, mas ao invés de sua mão afundar ela foi repelida. Então, um sorriso se formou no seu rosto, Caim sorria em euforia para o sétimo príncipe do inferno!
Ao perceber a expressão de Caim, Baalzebub reagiu instintivamente, sorriu de volta para a gargalhada abismal de Caim, com as moscas infernais preenchendo sua boca. Então ele deu um soco no diafragma do Caim, o monge asiático não conseguiu gritar antes que outro soco, agora no olho direito, estalasse em seu crânio. Antes que seu corpo caísse no chão, Abel segurou seu braço – Caim era um recurso valioso demais para Baalzebub.